domingo, fevereiro 08, 2004

Resenha de “Da Moral em Economia” do ex-embaixador José Osvaldo de Meira Penna

Este livro não é de fácil resenha. Quando o adquiri, pensei – lendo seu título – que estaria de posse de uma resenha de questões como as levantadas por James Buchanan ou Amartya Sen, com alguma adição de idéias próprias de nosso último (?) remanescente dos pensadores liberais brasileiros oriundos do Itamaraty. Na verdade, trata-se de um livro que tem muito das idéias do autor sobre psicologia social com um forte componente crítico de aspectos da política nacional.

O leitor apressado não deve se confundir: existem vários tipos de liberais no mundo. Não se trata de uma forma de pensamento homogênea e, talvez, a melhor forma de ver isto seja através deste link ou através deste teste (Politopia). Creio que o ex-embaixador e eu temos algumas divergências quanto ao tipo de liberalismo que achamos mais adequado ao Brasil mas, claro, isto não é alvo desta resenha. Pois vamos à mesma.

O livro se divide em dez (10) capítulos e sua diagramação me é incômoda pois há uma irregular variação no tamanho das fontes utilizadas no texto. Pessoas oriundas do mundo acadêmico, como eu, estão acostumadas com mudanças assim apenas por motivos de citações originais de outros autores. No livro do embaixador, parece haver intenção similar, mas me parece um pouco confuso o uso destas fontes. Há também uma falha que, espero, seja corrigida em edições posteriores: na página 59, em sua última linha, temos uma frase incompleta. O autor, gentilmente, informou-me o complemento (“...sobrevivência da própria liberdade”). Finalmente, outro incômodo na diagramação do livro é a figura 1 que aparece na p.92, muito antes de ser citada.

Economistas não se sentirão à vontade com o livro, devo dizer. Mesmo no capítulo 1, sobre praxeologia – um tópico eminentemente misesiano – Meira Penna se utiliza de sua (vasta) erudição para traçar paralelos com outras áreas do conhecimento. Embora seja um capítulo de agradável leitura, eu remeteria o leitor interessado em praxeologia à obra original de Mises (A Ação Humana), cuja leitura, embora cansativa, pode ser mais detalhada e mais sedimentada em conceitos econômicos.

O capítulo 2 é um bom capítulo sobre a falácia do bom selvagem que é a fonte de muita engenharia social cuja pior consequência é desaguar no oceano totalitário. O capítulo 3 procura apresentar a importância dos direitos de propriedade mas contém algumas impropriedades. Por exemplo, na p.68, diz-se que: “Tal qual de fato sustenta o Prêmio Nobel, criador da Escola de Escolha Pública (Public Choice), todos os empresários preferem seu próprio lucro ao lucro do concorrente”. Na verdade, isto é tão antigo quanto Adam Smith. O que o autor provavelmente quis dizer é que este comportamento racional, quando presente na área pública de um sistema econômico, pode fazer com que os interesses egoístas sejam canalizados para a obtenção de rendas – via governo – com diluição de custos por todo o restante da sociedade.

No capítulo 5, o autor explora um tema comum em Economia que é a inconsistência intertemporal de decisões no curto e longo prazos através dos conceitos de razão curta e razão longa. Na verdade, o autor poderia ter usado uma literatura que, por sinal não explora, a literatura novo-institucional representada pelos trabalhos de Douglass North e associados. Não é necessário criar novos conceitos (razão curta e longa) para tentar explicar o problema de curto e longo prazo moral na Economia. Entretanto, a tentativa do autor de operacionalizar estes conceitos é bem-vinda pois a compreensão da ideologia, em modelos microeconômicos de ação coletiva é, ainda hoje, bastante subdesenvolvida.

Um ponto que me desagrada é a citação à Hazlitt (p.206). Hazlitt, como se sabe, é famoso por ter escrito um livro de Economia (Economics in one lesson) que é muito citado por diversos economistas libertários da linha austríaca. Meira Penna o qualifica como grande economista o que, creio, não é a opinião da grande maioria dos economistas (não-marxistas). Hazzlitt não é conhecido por ter feito nada de relevante em Teoria Econômica, mas apenas por este livro que, bom ou não – e aqui me apóio em David Friedman em seu ceticismo quanto a este autor (vide as recomendações de leitura em The Machinery of Freedom) – não me parece suficiente para qualificá-lo quase em pé de igualdade com gente, por exemplo, do porte de James Buchanan ou mesmo de Karl Marx.

Aliás, há uma característica muito frequente – e que me desagrada – nos escritos de liberais e conservadores-liberais brasileiros: como são (somos) fortemente excluídos da imprensa nacional em termos de espaço para publicação, tendem a praticar uma forma de citação de seus pares liberais que, muitas vezes, exagera no superlativo. Lembro-me de ter sido repreendido, em um fórum de discussões na internet, por não concordar com as opiniões de um liberal. Como sou um liberal, ignorei a repreensão e continuo me guardando o direito de discordar de meus amigos quando os acho inconsistentes. Naturalmente concedo-lhes o mesmo direito.

As tentativas de análises econômicas do autor não são, a meu ver, bem fundamentadas. Primeiramente, dados, quando apresentados, vêem sem fonte. Por exemplo, o leitor é informado que o desemprego nos EUA é de 5% (p.271), mas não se sabe quando. A análise do salário mínimo como gerador de distorções é, a princípio, correta. Mas, veja bem, a princípio. O efeito da adoção de instituições como a do salário mínimo é deletério em economia básica. Mas, basta tornar os modelos menos irrealistas para que este efeito seja menos claro. Se Meira Penna se baseia em economistas austríacos mais tradicionais (i.e. que não usam modelos em forma matemática), então está exposto às mesmas críticas que têm levado muitos novos economistas austríacos a tentarem se aproximar do debate científico com o uso, sim, de modelos ou de econometria.

Aliás, ainda sobre economia, há um certo mistério sobre o que o autor entende por expectativas racionais. O conceito aparece poucas vezes no livro e, para mim, não ficou muito claro se o autor o está criticando ou não. Meira Penna parece seguir os economistas austríacos na crítica dos modelos econômicos tradicionais neste ponto.

Sobre a linguagem do autor, esta é bastante agressiva e cruel com os seus desafetos políticos. Isto não é necessariamente ruim – é até divertido – mas pode espantar leitores curiosos quanto ao liberalismo. Sendo uma obra não-acadêmica, não há motivos para se criticar este tipo de linguagem, mas, mesmo um simpático às idéias liberais como eu pode se sentir desconfortável com tantas repreensões. Creio que, se o objetivo do autor – e provavelmente é um dos seus objetivos – é atrair mais pessoas para a apreciação positiva das idéias liberais, um pouco menos de agressividade seria suficiente. Particularmente sou mais simpático a argumentos teóricos como os expostos em The Lost Literature of Socialism, embora, confesso, adore as ironias e neologismos que Meira Penna cria.

Apesar de não concordar com alguns aspectos da obra de Meira Penna, não posso deixar de me fascinar com a produtividade do mesmo. O autor é um liberal que escreve já há muitos anos e tem procurado se manter atualizado nos diversos aspectos dos avanços da teoria liberal moderna. Lamentavelmente, meus conhecimentos de psicologia me impedem, obviamente, de apreciar diversos pontos da análise do autor. Outro grande serviço que o autor presta à cultura nacional é divulgar autores estrangeiros pouco conhecidos aqui (como Ayn Rand ou Lord Acton, por exemplo). Não que sejam autores desconhecidos em outros países, mas o desconhecimento, por exemplo, de quem tenha sido Lord Acton, no Brasil, é algo preocupante. Seja por causa da falta de cultura ou por causa da propalada hegemonia gramsciana da esquerda nos meios culturais.

Concluindo, creio que economistas não gostarão do livro, pois o título não corresponde ao que um acadêmico médio de minha ciência espera encontrar no livro. Isto não lhe tira o valor e, para colaborar com o esforço do autor, gostaria de recomendar algumas leituras complementares para o leitor interessado em liberalismo.

Embora o autor siga muitos de meus amigos do Instituto Liberal em sua paixão com os economistas austríacos, ainda acho que The Machinery of Freedom (David Friedman) e The Joy of Freedom (David Henderson) são mais adequados. A análise econômica dos austríacos não é, hoje em dia, limitada à (dogmática?) postura anti-modelamagem que aparece notadamente em Mises. Basta ver os últimos números da Review of Austrian Economics e os diversos artigos de uma figura-chave desta abordagem: Peter Boettke. Seu pluralismo é bem-vindo e merece maior apreciação daqueles que, como eu, gostam da Teoria Austríaca mas também compreendem que, como disse Milton Friedman: “não existe economia austríaca e não-austríaca. Existe boa e má economia”. Resta-nos saber como encontrar e construir a boa economia.