Como vencer um debate sem ter razão
Schopennhauer tem um livrinho assim, que Olavo de Carvalho traduziu, colocando em rodapé notas interessantes. Reinaldo Azevedo, do Primeira Leitura, fez um outro texto de natureza semelhante. Eu anunciei ontem, mas não resisto a colocá-lo aqui (pelo menos as regras).
É importante lembrar que muita gente confunde "opinião neutra" com boa opinião. O que é opinião neutra? Estou chamando-a assim porque caracteriza uma ilusão que diz que somente in medio virtus, ou seja, a "virtude está no meio". Miguel Reale adora esta expressão (ele e outros advogados...você já leu as memórias do Miguel Reale? Deveria ler...).
O problema é que nem sempre isso é válido. Já observei que muitos participantes de debates gostam deste tipo de comportamento. O sujeito quer ser o medio. Acha que, estando no meio, está mais "ponderado", "tolerante" ou "razoável". Nada mais longe da realidade.
E um exemplo simples é: "você é contra a escravidão?" Neste caso, dizer que tem de ponderar ambas as opiniões não me parece uma boa opção (embora ouvir um racista seja uma posição que devemos democraticamente adotar, exceto no caso em que ele nos aponta uma arma...e vice-versa).
Por que as pessoas gostam de ficar no meio? Simples. Elas querem ser populares mesmo que isso lhes custe em termos de amizade. Pense no político em campanha. Por que evitam discursos que realmente revelam suas preferências? Porque perdem votos.
Ou seja, há algo de hipócrita em estar no meio. E eu diria que isto ocorre, principalmente, no caso da política.
Bem, vamos lá. Deixemos o Reinaldo falar.
Primeira Leitura : entenda : Decálogo do bom polemista
Lição número 1 – Seja o primeiro a acusar o outro de agressivo
Jamais permita que seu adversário, numa porfia, seja o primeiro a sacar tal arma. Ainda que você, movido pelo espírito de Platão ou pelo espírito de porco — tanto faz! —, tenha dado início ao tumulto retórico, é fundamental sair gritando, como um bâmbi desarvorado: “Fogo, fogo na floresta!”. Poucas coisas conferem tanto poder a um polemista como o lugar da vítima. Até porque, devidamente protegido, você conquista a imunidade para atacar. Ao acusar o outro de agressivo, você também se candidata a ter o charme da mansidão.
Lição número 2 – Mude sempre o objeto da polêmica
Isso é fundamental. Se você deu o azar de o seu contendor ser do tipo que lhe cobra precisão por isso ou aquilo que você mesmo disse, a sua melhor saída é dizer que argumentos são inúteis porque de todos sobejamente conhecidos. Insista em que o seu oponente não entendeu direito o que você quis dizer. Não se furte a uma sutil autoflagelação retórica e diga, para descrença geral, que talvez não tenha sabido se expressar direito. O objetivo é casar a modéstia de rigor com a sombra de suspeição sobre a inteligência alheia.
Lição número 3 – Acuse o outro de vaidoso
Prática importante. Faça parecer que você está no debate apenas por imposição das circunstâncias. Embora, obviamente, postos frente a frente num confronto, não haja nenhuma razão objetiva que o faça menos vaidoso do que o interlocutor, é preciso ter a primazia nessa classificação. O mundo anda especialmente sensível ao “pobrismo”. O exercício da humildade intelectual faz parecer que você está no confronto apenas porque deseja o bem, o belo e o justo. Por oposição, veja só o que sobrou ao outro lado defender...
Lição número 4 – Diga que seu adversário invadiu a sua privacidade
Ainda que seja falso — o objetivo não é debater, leitor, mas ganhar! —, é muito importante acusar o outro de não fazer a devida distinção entre as esferas pública e privada. Diga que ele abandonou as suas idéias e passou a fazer ilações indevidas que buscam enlaçar QUEM você é com O QUE você diz. Esse jogo “quem/que” confere certo sotaque francês, pós-barthesiano, ao recurso e o faz parecer especialmente hábil nos caminhos da filosofia e da linguagem.
Lição número 5 – Faça da dúvida sua única certeza
Isso é crucial, definidor mesmo de sua carreira de polemista. Evite afirmações categóricas. Ou, pelo menos, sempre as insira num contexto de suspeição da própria afirmação. Faça com que qualquer certeza expressa pelo oponente pareça nada além de afirmação apressada e falta de rigor técnico. Mas não seja idiota: não se atreva a combater as certezas do outro com respostas afirmativas. Oponha ao que houver de propositivo ou de diagnóstico claro no texto a ser combatido não mais do que interrogações — de sorte que a tese alheia se mostre precária mesmo sem ser testada —, mas que ninguém possa, também, vir a lhe cobrar respostas.
Lição número 6 – Seja um cosmopolita
Sob nenhuma hipótese (nenhuma!, ouviu bem?), permita que o outro inaugure a caracterização do que seria a perspectiva provinciana e mesquinha em face do que quer que seja. Sim, a essa altura, o objeto da polêmica já se esvaiu faz tempo (Lição 2). E isso lhe faculta o caminho para afirmações genéricas, aquecidas no forno das mais extravagantes abstrações, sobre, sei lá, o movimento dos corpos celestes, a economia globalizada, as vicissitudes do ser contra o não-ser universal etc. e tal. Assuma o lugar do humanista genérico. Deixe com o outro a tarefa de se dedicar a mundanidades e especificidades. Sei que essa lei é um pouco vaga. Mas é para ser assim mesmo. Fale sobre o nada com propriedade e segurança.
Lição número 7 – Abuse do futuro-do-pretérito
É um tempo verbal especialmente talhado para o propósito de tentar desqualificar o outro sem ter de correr o risco de ser afirmativo (ver Lição 5). Procedimentos como “Eu poderia argumentar (...)”; “Seria ocioso dizer”; “Não me caberia aqui relatar” são sempre úteis. Assim, você se dispensa de argumentar, dizer ou relatar; faz o leitor supor que, se quisesse, você o faria com eficiência e ainda evidencia que a tal tarefa só não se dedicou porque o outro, claro!, não vale o esforço.
Lição número 8 – Acuse o outro de fazer “apenas o debate ideológico”
Mesmo manjado e recurso já bastante conhecido, ele funciona. Ainda que você não consiga provar — porque ninguém consegue — que há argumentos escoimados de qualquer ideologia (por oposição a outros, que são não mais do que ideológicos), operar com tal categoria lhe confere certo ar de superioridade técnica. Se ideológico, logo, ou errado ou mal-intencionado.
Lição número 9 – Seja um bom pessimista
Se não tiver jeito, e você tiver caído mesmo na roubada de ter de responder a uma questão concreta do outro, ainda assim, quando tudo parece perdido, há um ponto de fuga. Combine as lições 2 e 5 e ataque, pelo centro, com Gramsci. Diga-se “um pessimista no diagnóstico, mas otimista na ação”, daí que, claro!, compreenda o esforço sincero do outro em encontrar uma resposta etc. etc. etc. Não esqueça de dizer que você torce pelo sucesso da proposta e até se ressente de não alimentar ilusões. É sempre importante parecer que você enxergou o que ainda ninguém viu. Isso lhe confere certa sapiência senhorial, fazendo o adversário parecer um jovenzinho irresponsável, dado a rompantes de quixotismo.
Lição numero 10 – Renuncie ao triunfo, mesmo que (e especialmente), de fato, você não tenha triunfado
Assim como é fundamental ser o primeiro a acusar o outro de “agressivo” (Lição 1), também exerça o charme da “renúncia ao triunfo”, mesmo que você, de fato, não tenha triunfado. É importante fazer parecer que a questão debatida, para você, não tinha lá tanta importância. Saia-se com uma fórmula mais ou menos assim: “Se, para Fulano, ganhar é fundamental, que fique com os louros desse confronto que nem deveria ter começado”. Só não caia na tentação de encerrar a polêmica com um “Ao vencedor, as batatas”. Porque isso indicará que você não leu Machado de Assis direito. Afinal, o adágio define mesmo os vencedores, e não o ouro dos tolos, conforme se diz por aí.
Schopennhauer tem um livrinho assim, que Olavo de Carvalho traduziu, colocando em rodapé notas interessantes. Reinaldo Azevedo, do Primeira Leitura, fez um outro texto de natureza semelhante. Eu anunciei ontem, mas não resisto a colocá-lo aqui (pelo menos as regras).
É importante lembrar que muita gente confunde "opinião neutra" com boa opinião. O que é opinião neutra? Estou chamando-a assim porque caracteriza uma ilusão que diz que somente in medio virtus, ou seja, a "virtude está no meio". Miguel Reale adora esta expressão (ele e outros advogados...você já leu as memórias do Miguel Reale? Deveria ler...).
O problema é que nem sempre isso é válido. Já observei que muitos participantes de debates gostam deste tipo de comportamento. O sujeito quer ser o medio. Acha que, estando no meio, está mais "ponderado", "tolerante" ou "razoável". Nada mais longe da realidade.
E um exemplo simples é: "você é contra a escravidão?" Neste caso, dizer que tem de ponderar ambas as opiniões não me parece uma boa opção (embora ouvir um racista seja uma posição que devemos democraticamente adotar, exceto no caso em que ele nos aponta uma arma...e vice-versa).
Por que as pessoas gostam de ficar no meio? Simples. Elas querem ser populares mesmo que isso lhes custe em termos de amizade. Pense no político em campanha. Por que evitam discursos que realmente revelam suas preferências? Porque perdem votos.
Ou seja, há algo de hipócrita em estar no meio. E eu diria que isto ocorre, principalmente, no caso da política.
Bem, vamos lá. Deixemos o Reinaldo falar.
Primeira Leitura : entenda : Decálogo do bom polemista
Lição número 1 – Seja o primeiro a acusar o outro de agressivo
Jamais permita que seu adversário, numa porfia, seja o primeiro a sacar tal arma. Ainda que você, movido pelo espírito de Platão ou pelo espírito de porco — tanto faz! —, tenha dado início ao tumulto retórico, é fundamental sair gritando, como um bâmbi desarvorado: “Fogo, fogo na floresta!”. Poucas coisas conferem tanto poder a um polemista como o lugar da vítima. Até porque, devidamente protegido, você conquista a imunidade para atacar. Ao acusar o outro de agressivo, você também se candidata a ter o charme da mansidão.
Lição número 2 – Mude sempre o objeto da polêmica
Isso é fundamental. Se você deu o azar de o seu contendor ser do tipo que lhe cobra precisão por isso ou aquilo que você mesmo disse, a sua melhor saída é dizer que argumentos são inúteis porque de todos sobejamente conhecidos. Insista em que o seu oponente não entendeu direito o que você quis dizer. Não se furte a uma sutil autoflagelação retórica e diga, para descrença geral, que talvez não tenha sabido se expressar direito. O objetivo é casar a modéstia de rigor com a sombra de suspeição sobre a inteligência alheia.
Lição número 3 – Acuse o outro de vaidoso
Prática importante. Faça parecer que você está no debate apenas por imposição das circunstâncias. Embora, obviamente, postos frente a frente num confronto, não haja nenhuma razão objetiva que o faça menos vaidoso do que o interlocutor, é preciso ter a primazia nessa classificação. O mundo anda especialmente sensível ao “pobrismo”. O exercício da humildade intelectual faz parecer que você está no confronto apenas porque deseja o bem, o belo e o justo. Por oposição, veja só o que sobrou ao outro lado defender...
Lição número 4 – Diga que seu adversário invadiu a sua privacidade
Ainda que seja falso — o objetivo não é debater, leitor, mas ganhar! —, é muito importante acusar o outro de não fazer a devida distinção entre as esferas pública e privada. Diga que ele abandonou as suas idéias e passou a fazer ilações indevidas que buscam enlaçar QUEM você é com O QUE você diz. Esse jogo “quem/que” confere certo sotaque francês, pós-barthesiano, ao recurso e o faz parecer especialmente hábil nos caminhos da filosofia e da linguagem.
Lição número 5 – Faça da dúvida sua única certeza
Isso é crucial, definidor mesmo de sua carreira de polemista. Evite afirmações categóricas. Ou, pelo menos, sempre as insira num contexto de suspeição da própria afirmação. Faça com que qualquer certeza expressa pelo oponente pareça nada além de afirmação apressada e falta de rigor técnico. Mas não seja idiota: não se atreva a combater as certezas do outro com respostas afirmativas. Oponha ao que houver de propositivo ou de diagnóstico claro no texto a ser combatido não mais do que interrogações — de sorte que a tese alheia se mostre precária mesmo sem ser testada —, mas que ninguém possa, também, vir a lhe cobrar respostas.
Lição número 6 – Seja um cosmopolita
Sob nenhuma hipótese (nenhuma!, ouviu bem?), permita que o outro inaugure a caracterização do que seria a perspectiva provinciana e mesquinha em face do que quer que seja. Sim, a essa altura, o objeto da polêmica já se esvaiu faz tempo (Lição 2). E isso lhe faculta o caminho para afirmações genéricas, aquecidas no forno das mais extravagantes abstrações, sobre, sei lá, o movimento dos corpos celestes, a economia globalizada, as vicissitudes do ser contra o não-ser universal etc. e tal. Assuma o lugar do humanista genérico. Deixe com o outro a tarefa de se dedicar a mundanidades e especificidades. Sei que essa lei é um pouco vaga. Mas é para ser assim mesmo. Fale sobre o nada com propriedade e segurança.
Lição número 7 – Abuse do futuro-do-pretérito
É um tempo verbal especialmente talhado para o propósito de tentar desqualificar o outro sem ter de correr o risco de ser afirmativo (ver Lição 5). Procedimentos como “Eu poderia argumentar (...)”; “Seria ocioso dizer”; “Não me caberia aqui relatar” são sempre úteis. Assim, você se dispensa de argumentar, dizer ou relatar; faz o leitor supor que, se quisesse, você o faria com eficiência e ainda evidencia que a tal tarefa só não se dedicou porque o outro, claro!, não vale o esforço.
Lição número 8 – Acuse o outro de fazer “apenas o debate ideológico”
Mesmo manjado e recurso já bastante conhecido, ele funciona. Ainda que você não consiga provar — porque ninguém consegue — que há argumentos escoimados de qualquer ideologia (por oposição a outros, que são não mais do que ideológicos), operar com tal categoria lhe confere certo ar de superioridade técnica. Se ideológico, logo, ou errado ou mal-intencionado.
Lição número 9 – Seja um bom pessimista
Se não tiver jeito, e você tiver caído mesmo na roubada de ter de responder a uma questão concreta do outro, ainda assim, quando tudo parece perdido, há um ponto de fuga. Combine as lições 2 e 5 e ataque, pelo centro, com Gramsci. Diga-se “um pessimista no diagnóstico, mas otimista na ação”, daí que, claro!, compreenda o esforço sincero do outro em encontrar uma resposta etc. etc. etc. Não esqueça de dizer que você torce pelo sucesso da proposta e até se ressente de não alimentar ilusões. É sempre importante parecer que você enxergou o que ainda ninguém viu. Isso lhe confere certa sapiência senhorial, fazendo o adversário parecer um jovenzinho irresponsável, dado a rompantes de quixotismo.
Lição numero 10 – Renuncie ao triunfo, mesmo que (e especialmente), de fato, você não tenha triunfado
Assim como é fundamental ser o primeiro a acusar o outro de “agressivo” (Lição 1), também exerça o charme da “renúncia ao triunfo”, mesmo que você, de fato, não tenha triunfado. É importante fazer parecer que a questão debatida, para você, não tinha lá tanta importância. Saia-se com uma fórmula mais ou menos assim: “Se, para Fulano, ganhar é fundamental, que fique com os louros desse confronto que nem deveria ter começado”. Só não caia na tentação de encerrar a polêmica com um “Ao vencedor, as batatas”. Porque isso indicará que você não leu Machado de Assis direito. Afinal, o adágio define mesmo os vencedores, e não o ouro dos tolos, conforme se diz por aí.
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