quarta-feira, junho 23, 2004

O incrível cronista que encolheu

L.F.Verissimo continua falando inverdades (ou "mentiras"?) sobre a economia. Se você é assinante do Jornal O Globo, poderá ler mais uma pérola de imprecisão do famoso cronista. [Para ler minhas correções ao cronista, veja este link]

Aí vai o trecho: O economismo neoclássico sofreu alguns abalos nos últimos anos, com a deserção ou a autocrítica de alguns dos seus luminares, mas nem toda a evidência acumulada de que o domínio do seu pensamento único só aumentou a desigualdade e a miséria no mundo impede que ele continue a ser chamado de “pescocê”. O Brasil do PT desencaminhado é um exemplo doloroso das consequências deste estranho acidente semântico, ocorrido não se sabe bem quando: o dia em que as frases “responsabilidade fiscal” e “responsabilidade social” passaram a ser antônimas, e excludentes. Mas se insiste que aqui não é assim, ou se insiste que o nome certo disso é “pescocê”.

Ele fala de "pescocê" porque se refere, no pequeno texto de domingo último, à palavra "pescoço", em francês. Como sempre, a idéia do cronista é criticar a economia neoclássica, mesmo que ele não saiba o que isto signifique.

Há vários problemas no trecho acima. Primeiro, fica difícil saber o que é "economismo". Talvez o cronista não entenda o suficiente de ciência e pode estar se referindo ao uso do raciocínio econômico às situações da vida. É como um conhecido meu, marxista, que apresenta certa antipatia à economia (desculpe, "ao economismo") neoclássico, mas, agora que está apertado de grana, fez até planilha de custos.

Segundo, a discussão do século anterior sobre o que seria "economia neoclássica" é algo que Verissimo provavelmente não entende bem. Posso fazer várias perguntas para ele, pessoalmente, sobre os termos em questão e garanto que ele vai se enrolar todo. O que é, para Verissimo, "neoclássico"? É Keynes "neoclássico"? O que Keynes chama de "clássico" é "neoclássico"? Um novo-keynesiano tem raízes "neoclássicas"?

Terceiro, em ciência, ao contrário dos partidos políticos (Verissimo não escreveu uma linha sobre Waldomiro Diniz...saiu de férias antes do escândalo, voltou e, desde então, a vítima preferida é Bush. E Paulo Francis é que morava nos EUA...), as pessoas não fazem "autocrítica" (Luckaks fez autocrítica, para a alegria da turma do "outro mundo é possível" húngara, mas não era economista). Muito menos se diz que alguém é "traidor".

Na verdade, sou injusto aqui. Existem pessoas que mudam seus caminhos dentro da ciência. Vários luminares heterodoxos mudaram de lado nos últimos anos. Marcos Lisboa talvez seja uma esfinge para Verissimo: é ele um luminar neoclássico que mudou de lado (está no governo do PT) após mudar de lado quando começou sua famosa tese sobre neoricardianos (heterodoxos) e terminou se transformando num talentoso crítico da heterodoxia (logo, um "ortodoxo"...mas "neoclássico"?)?

O que dizer de Stiglitz? Ele critica o FMI. É um "heterodoxo"? Um "neoclássico"? E James Tobin, então? Vocês já o viram vociferando contra os "neoclássicos"? Ou contra os "economicistas"?

Finalmente, algo que um pesquisador sério precisa fazer é reler TODAS as colunas do cronista, desde 1994, para ver se o que ele reclama de "responsabilidade social" e "responsabilidade fiscal" é correto. Do trecho acima podemos concluir que ele acha um erro que "fiscal seja diferente de social", certo?
Então veja o que ele disse em 2003 (negrito por minha conta):

As frases que nos perseguem - Luis Fernando Verissimo

O FMI nos ama, a Goldman Sachs nos recomenda, o que foi que fizemos de errado? Nós do CALDO, Corpo Auxiliar Luma de Oliveira, cuja função é torcer para que o PT não perca sua alma, entendemos todos os argumentos do novo governo para continuar a política econômica do velho, e que podem ser resumidos na frase “coerência tem hora”. Tudo bem. Longe da gente criar problemas para o Lula e dar chumbo para a reação. Mas quando chegar a hora de ser coerente de novo, lembramos que um bom exemplo de cura da dependência no capital predatório internacional quem deu foi o Joseph Stiglitz, que era do Banco Mundial e sabe: a Malásia superou a crise dos asiáticos mais depressa porque foi o país que desprezou mais depressa as regras do FMI. Nossa recomendação é: pensem malásio. Quando chegar a hora.

Mas não é preciso ir tão longe no mapa, apenas mais longe no tempo, para buscar exemplos de desobediência premiada à ditadura da especulação. Quem conhece um pouco da história dos Estados Unidos sabe que a grande expansão americana no século 19 foi feita de falência em falência, com depressões purgativas seguidas de novos ciclos de calotes criativos, e que não é exagero dizer que a história do desenvolvimento deles é a história de uma guerra aberta entre o capital produtivo e o capital financeiro, só amainada, mas não encerrada, com o crescimento das bolsas de valores e do mito do capitalismo popular. Sorte dos americanos que na época não havia um FMI inglês para receitar responsabilidade fiscal e dizer que pagar dívidas era mais importante do que se industrializar, criar empregos e conquistar um continente. E que o ethos dominante no mundo ainda não fosse o estabelecido pelo capital financeiro, segundo o qual é mais moral manter o crédito do que alimentar um filho.

O novo governo deveria ter adaptado a frase que perseguiu o Fernando Henrique durante todo o seu bi-mandato, com um adendo: esqueçam tudo o que nós escrevemos e dissemos — por enquanto. Mas tive um exemplo de como nem sempre se deve lamentar as frases que nos perseguem. Escrevi uma vez que era um cético que só acreditava no que pudesse tocar: não acreditava na Luiza Brunet, por exemplo. Cruzei com a Luiza Brunet num dos camarotes deste carnaval. Ela me cobrou a frase, e disse que eu podia tocá-la para me convencer da sua existência. Toquei-a. Não me convenci. Não pode existir mulher tão bonita e tão simpática ao mesmo tempo. Vou precisar de mais provas.


Como você vê, leitor, há um problema quando se escreve para o jornal, pelo menos duas vezes por semana. E há um problema maior quando se escreve, com esta freqüência, sobre o que não se entende bem. Termos sem definição (ou "chavões", "jargões"), imprecisões científicas ("economicismo neoclássico" é antônimo de que?) e mudanças de opinião que alteram totalmente as conclusões (ou as antigas, ou as novas, escolha).

Isto sim é a comédia da vida privada. Mas certamente não é muito engraçada para quem entende do assunto.