sábado, novembro 20, 2004

Observando a imprensa com mais cuidado

Se Benedita da Silva disser que não usou indevidamente o dinheiro público e que, adicionalmente, quem disser isso, pratica crime de discriminação racial e de gênero, a imprensa brasileira dirá....(preencha o espaço lembrando do que já leu).

Agora, se Condolezza Rice emitir uma opinião qualquer sobre o Iraque, a mesma imprensa poderá ser acusada de discriminação?

Enquanto você pensa nisto, veja mais este contraste:

1. “Não pode falar muito alto isto, não. Lula bebia, Lula bebia mesmo. Lula tinha um armário, no último armário da sala dele, um garrafão assim. A gente recebia uísque em garrafão. Era até um homem chamado Gordo que levava para a gente. E a gente já tinha aqui tudo reservado para a noitada. E aí meu marido falava: ‘A que horas você chega?’ E eu dizia: ‘Se não tiver trabalho, eu chego cedo’. Imagina! Eu ás vezes nem ia para casa, amanhecia o dia...”

A fala acima pertence a uma mulher chamada Luíza, natural da Paraíba, que trabalha na lanchonete do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, herdeiro do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, que já foi presidido por Lula. Ali ele iniciou a carreira política que o levou a comandar o PT e, depois, o Brasil. Integrava o documentário Peões, de Eduardo Coutinho, que estréia no próximo dia 26, em exibições sempre alternadas com Entreatos, de João Moreira Salles. Integrava! O cineasta decidiu cortá-la para, afirma ele, Luíza “não ficar mal” — segundo entendi, “não ficar mal” lá no sindicato.

Coutinho chegou mesmo a especular que ela poderia ser considerada uma “traidora da classe” por conta do que disse. Em entrevista à Folha, disse ter-se arrependido de usar tal expressão. Deixo aqui registrado que tenho grande admiração por Coutinho. Cabra Marcado para Morrer e Edifício Master, por exemplo, são filmes inteligentes, sensíveis, competentes. Almir de Freitas, redator-chefe da revista, que escreve a respeito de Peões e de Entreatos na edição de dezembro, viu a pré-estréia de ambos e os considerou excelentes. Não duvido.

Mas Coutinho, não há como ignorar, arranjou um péssimo argumento para justificar o corte. Vamos ver. Segundo sei — não vi ainda —, seu filme encontra alguns companheiros de Lula das jornadas sindicais do fim dos anos 70 e início dos anos 80, lá na pré-história do PT, quando sindicalistas, setores da Igreja, do estudantado, da academia e egressos da extrema esquerda se juntaram para criar um partido “sem patrões” e fundar as bases de um certo socialismo democrático — o que, convenha-se, tivessem conseguido, teria sido, ao lado da jabuticaba, a mais nativa das realizações. Se alguém já cruzou, em algum momento da história, com democracia e socialismo debaixo do mesmo teto teórico ou prático, favor enviar e-mails à redação. Vou poupar os leitores, agora ao menos, do que penso sobre o socialismo petista, especialmente nesta fase em que o partido, rumo à libertação, decidiu pegar o atalho que passa pelo quintal de Roberto Jefferson e do PP de Paulo Maluf...


2. Na quinta-feira, 28 de outubro, quando faltavam três dias para as eleições em Porto Alegre, um grupo de intelectuais, jornalistas, artistas, empresários e profissionais liberais decidiu publicar nos jornais da capital gaúcha um manifesto em apoio ao candidato José Fogaça (PPS). Surpreendentemente, a tentativa acabou frustrada. Dos jornais consultados, dois exigiram da Justiça uma espécie de “salvo-conduto” judicial para assegurar a publicação e outro negou-se a publicar. Temiam a condenação por parte do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul.

Tentou-se então publicar um espaço em branco, com o texto: “O espaço acima estava destinado para conter a expressão do pensamento dos signatários (todos devidamente identificados), mas a publicação não foi autorizada. Impedidos de manifestar a expressão de nosso pensamento, assegurado na Constituição, não abandonamos nossas idéias e nossos ideais. Fica o espaço em branco e a nossa crença inabalável no valor da liberdade”. Para surpresa, nem isso foi aprovado pelos jornais, em um flagrante abalo da liberdade de expressão garantido na Constituição Federal.


Em (1) você tem um sujeito se auto-censurando com temor de ofender os - ah, Raymundo Faoro - donos do poder. Em (2) você tem os jornais se auto-censurando - Raymundo, você aqui de novo? - por temor de ofender (e perder verbas publicitárias...aliás, quanto do lucro de um jornal vem de verbas publicitárias? Onde estão os cientistas sociais deste país quando se precisa deles?) os mesmos...donos do poder.

O ponto importante aqui é o seguinte: imprensa parcial não ajuda no crescimento econômico. Se houvesse uma variância maior da mesma em relação ao "poder", aí, creio, seria mais fácil pensar em termos de economia política. Mas, infelizmente...